É um sótão velho com a madeira do tecto e paredes carcomida pelo bicho. As escadas íngremes e acanhadas que subo a custo, de cabeça baixa para evitar alguma pancada pelo exíguo pé direito.
Glória vai à frente em silêncio, sei que não lhe era coisa fácil. A sujidade acumula-se nos cantos e a poeira repousa nos adornos de casa que jazem cada um por seu lado, também existem teias de aranhas, mais tímidas, nos seus rendilhados. Chegadas ao topo acolhe-nos um espaço amplo sob o redondo, com baús de carvalho à entrada de tampa abaulada, são cinco ao todo. Numa das paredes espreita um grande quadro de lousa, o pó não deixa ver o que está escrito. Aproximo-me. Pousado na borda superior está o que eu não via desde da minha escola primária, uma pega em madeira em forma de caneta, onde no bico uns ganchos em metal seguravam o pau de giz. Quem se lembra?
Esquadros, réguas, o compasso grande em madeira com que a professora exemplificava no quadro. O globo. Até aquele velho armário de duas portas de vidro, tão característico, lá estava um igual, que saudades!
No inicio, a avó Leonor insistiu na utilidade de ter aulas em casa, foi assim no primeiro ano. Com a minha renitência, queriam optar por um colégio interno. As minhas amigas de rua, as filhas dos caseiros eram livres, eu também queria ser. Tenho a ideia, vaga, que a minha mãe fazia tudo o que a avó Leonor lhe dizia. Imperou o bom senso de meu pai, que sem discussão, matriculou-me numa escola pública, onde andavam as minhas amigas, foi aí conclui a escola primária. Ainda um pouco distante da quinta, mas ia com a maior alegria. Era a Escola Primária do Bairro do Amial, mesmo perto da “Bouça das Regadas”, onde se situava a porta da mina de água que abastecia a quinta. Da VCI ainda se pode ver parte do aqueduto no recinto pertencente ao Hospital. O tio faz menção no testamento.
Até faz sentido, toda aquela zona é abundante em lençóis freáticos vindos de Nascente. A arca de água, daí o nome, é um exemplo. No século XVI existiam três fontes, no então designado, Arca das Três Fontes.
O burgo ainda ficava longe e a água era escassa para a população que vivia dentro das muralhas. A pedido do povo El-Rei D. Sebastião consentiu a autorização para aproveitar a água das três fontes de Paranhos, a ideia era encanar até à cidade. Para a ajuda dos gastos, a cidade ofereceu 1000 cruzados. O rei concedeu, mas não cumpriu a obra. Foi D. Filipe I, segundo de Espanha, que concretizou, acedendo à Câmara o aproveitamento da água. Pouco tempo depois chegava à Porta do Olival, através de um cano de pedra e também alcatruzes.
O percurso desta canalização atravessava a Estrada de Braga, actual Rua do Amial, seguia pela Devesa do Agueto até ao Lugar do Regado, de onde continuava “acantilada em arcos”. Talvez fosse partir daqui, aproveitando o aqueduto existente, que a minha família mandasse construir por sua conta um prolongamento até a casa.
A nossa quinta, onde vivi com a avó Leonor, ficava mesmo na fronteira entre a freguesia de Ramalde e Paranhos: lugar alto com boas vistas, terrenos férteis e água com fartura, rezavam assim as crónicas do princípio do século XX.
Três carteiras de dois lugares compõem a cena, de tampo inclinado e uma zona côncava para os lápis e canetas. Está tudo ali, naquele local poeirento.
As minhas memórias atravessam o tempo como um relâmpago, de repente estou sentada envergando uma bata branca, a professora Maria Luísa escreve exercícios no quadro, desenhado formas arredondadas para mim familiares. As letras.
Sempre convivi com elas, embora não as dominasse.
Éramos uma classe pequena. Alguns alunos faltavam nos primeiros dias, porque os pais não estavam conscientes da importância da escola, da falta que lhes iria fazer num futuro onde só uma arte não chega.
- Imaginas o que seria aqui, neste espaço agora fechado?
- Onde a sua mãe, Eduardinha, dava aulas às meninas da terra. Afirmei.
- Aqui muita gente aprendeu a ler: crianças, meninas, mulheres, quem tinha vontade de saber. Como é amplo albergava não só a sala de aula improvisada, mas também, o recanto da leitura, da escrita, dos lavores. Era onde a minha mãe se refugiava para se dedicar ao que mais gostava de fazer. Cada canto tinha um nome, exibido num cartão com uma letra aprimorada colado na parede.
- Este sótão tem imenso potencial, poderia fazer aqui algo muito giro.
- Para quê?
Uma expressão de tristeza toma conta dos olhos de Glória.
Há duas grandes janelas de armação em ferro podre e esburacado que espreitam para o telhado. Os beirais enchem-se de terra e ervas, sementes que brotam trazidas pelo vento. Ao meu lado espreita Gloria.
- Na primavera enche-se de flores selvagens, até papoilas nascem. Temos que mandar limpar, senão no Inverno há entupimentos desnecessários. Vê deste lado.
É outra janela que alcança montes e vales, ao longe avista-se a cidade de Guimarães. Entre os montes verdes e castanhos sobressaem pintas de várias cores e formatos que polvilham a paisagem. Ecoam os toques das ave-marias na igreja.
Perdidos por entre o pó duas poltronas de tecido adamascado num tom indecifrável espera que alguém lhe dê alguma utilidade, um candeeiro de pé com o abjour tombado faz o conjunto com uma mesa pequena, quadrada, vestida num castanho muito escuro. Adereços espalhados um pouco por todo o lado compõem o cenário: livros, malas de viagem, sombrinhas, marionetas de madeira, cadernos, folhas avulsas, uma máquina de escrever ferrugenta com o tampo em couro, pequenas telas, caixa de pinturas, pincéis, e vestidos, muitos vestidos estilo bella époque. Estávamos no Cantinho da leitura. Ali apodreciam ao tempo numa estante suja, exemplares de Rimbaud, Baudelaire, Anatole France Zola, Balzac e Verlaine.
Um baú aberto mostra chapéus de feitios diversos com penas e abas compridas. No outro canto uma chaise-longue espreguiça-se pelo tédio dos seus dias, esquecida de ver gente por aqueles lados. Quatro canapés juntam a ela nesse queixume.
Aborrecidos dias que devotados ao abandono, sem vida, aquele sótão fica em perpétua solidão...