Happy New Year!

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Cheira-me que está aí alguém.... então, não cumprimentas?

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

"Vamos Fazer História"

Oficinas de Escrita Criativa

"Vamos Fazer História"

Oficinas de Escrita Criativa destinadas a crianças entre os 7 e 14 anos, no Museu do Vinho do Porto.Vamos fazer história sobre a história do Vinho do Porto e da cidade que lhe deu o nome.
Vamos conhecer o passado da cidade e do seu vinho, espreitar o que se esconde no tempo e recontar para dar vida às memórias.   

"O cais estava cheio de embarcações, tantas que pareciam gente, as pipas rodavam sobre as tábuas de madeira que se estendiam até à margem. O Douro corria no seu leito indiferente, foi ele quem ajudou a transportar aqueles barcos, aquele vinho, aqueles homens. 
O Douro estava vaidoso, olhou para a multidão de soslaio e gritou para a cidade:
- Estás a ficar linda, com monumentos majestosos. Mas sou eu que te cubro com o meu leito e é ele que te dá vida.  
O Porto ergue-se, de peito feito, pela colina até à Sé...."
    
Esperamos pelas tuas histórias.  Dia: Domingo, 17/01 das 10:15 às 13 h.
Inscrições abertas. Informações: elsa.semedo@outlook.com
Formadora: Elsa Semedo 
Só precisas de papel, caneta/lápis e muita imaginação! 



quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

"As Memórias do Gil"


Na matilha, o Quixote era o líder. Avançava sempre destemido perante o perigo, normalmente irreal. Quando o perigo era iminente ninguém mais o via, de súbito era tomado por uma enxaqueca horrível. Algo semelhante àquelas cadelas cheias de laços e tótós, que andam sempre ao colo. Quando nos lançam olhares convidativos e lambem os lábios a provocar, mas depois, na aproximação temos que ouvir os insultos e os olhares de desdém das tias. Sim, porque cão de rico, não tem dona, tem tia. Vencido o obstáculo da tia, levamos sempre com as dores de cabeça delas.

Mas cada um tinha o seu papel: o bobo da corte; o mais veloz roubava nas horas de ponta; o inteligente - que era eu, - delineava estratégias. O Pacho e o Quixote pelo tamanho apareciam em primeiro lugar em caso de intrusão abusiva, dizia assim o letrado do grupo; o Jurisprudêncio.
Nós todos em coro ladrávamos com variações ritmadas para parecemos mais e espantar os curiosos. Quando descobertos, dois saíam na madrugada seguinte para encontrar nova morada, porque aquela corria demasiados perigos. Até escolher casa definitiva para nos albergar, existiam turnos de vigia. Tivemos pena de sair da casa de praia, tinha tudo à mão e boas acessibilidades, sem caminhos de cabras para nos fazer doer as patas.

Quando conseguimos a proeza de permanecer algum tempo sem mudanças, armazenamos os bens úteis e comida que dividimos democraticamente. No Verão, enterramos para permanecer fresco. No Inverno, era mais fácil de manter.

Partíamos para zonas diversas: bairros chiques, onde a oferta poderia ser maior. Descobrimos que os pobres também desperdiçam demasiado. Os Outros, os mesmos pobres, dividiam connosco os restos dos mal governados.

(Esta peça de teatro tem por objectivo chamar atenção para os direitos dos animais. Pretende ter uma vertente educacional nos públicos e visibilidade para o tema na sociedade. Este é um relato que nos mostra o outro lado do abandono, do mau trato, a vivência possível de quem sofre na pele as consequências desses actos. Apesar de fantasiado e adaptando as suas vivências às formas humanas. O que reproduz não deixa de ser real.... A finalidade primordial desta peça é a solidariedade para com associações zoófilas e campanhas de sensibilização/esterilização. )


terça-feira, 18 de novembro de 2008

O sotão da Glória

É um sótão velho com a madeira do tecto e paredes carcomida pelo bicho. As escadas íngremes e acanhadas que subo a custo, de cabeça baixa para evitar alguma pancada pelo exíguo pé direito.
Glória vai à frente em silêncio, sei que não lhe era coisa fácil. A sujidade acumula-se nos cantos e a poeira repousa nos adornos de casa que jazem cada um por seu lado, também existem teias de aranhas, mais tímidas, nos seus rendilhados. Chegadas ao topo acolhe-nos um espaço amplo sob o redondo, com baús de carvalho à entrada de tampa abaulada, são cinco ao todo. Numa das paredes espreita um grande quadro de lousa, o pó não deixa ver o que está escrito. Aproximo-me. Pousado na borda superior está o que eu não via desde da minha escola primária, uma pega em madeira em forma de caneta, onde no bico uns ganchos em metal seguravam o pau de giz. Quem se lembra?
Esquadros, réguas, o compasso grande em madeira com que a professora exemplificava no quadro. O globo. Até aquele velho armário de duas portas de vidro, tão característico, lá estava um igual, que saudades!
No inicio, a avó Leonor insistiu na utilidade de ter aulas em casa, foi assim no primeiro ano. Com a minha renitência, queriam optar por um colégio interno. As minhas amigas de rua, as filhas dos caseiros eram livres, eu também queria ser. Tenho a ideia, vaga, que a minha mãe fazia tudo o que a avó Leonor lhe dizia. Imperou o bom senso de meu pai, que sem discussão, matriculou-me numa escola pública, onde andavam as minhas amigas, foi aí conclui a escola primária. Ainda um pouco distante da quinta, mas ia com a maior alegria. Era a Escola Primária do Bairro do Amial, mesmo perto da “Bouça das Regadas”, onde se situava a porta da mina de água que abastecia a quinta. Da VCI ainda se pode ver parte do aqueduto no recinto pertencente ao Hospital. O tio faz menção no testamento.
Até faz sentido, toda aquela zona é abundante em lençóis freáticos vindos de Nascente. A arca de água, daí o nome, é um exemplo. No século XVI existiam três fontes, no então designado, Arca das Três Fontes.
O burgo ainda ficava longe e a água era escassa para a população que vivia dentro das muralhas. A pedido do povo El-Rei D. Sebastião consentiu a autorização para aproveitar a água das três fontes de Paranhos, a ideia era encanar até à cidade. Para a ajuda dos gastos, a cidade ofereceu 1000 cruzados. O rei concedeu, mas não cumpriu a obra. Foi D. Filipe I, segundo de Espanha, que concretizou, acedendo à Câmara o aproveitamento da água. Pouco tempo depois chegava à Porta do Olival, através de um cano de pedra e também alcatruzes.
O percurso desta canalização atravessava a Estrada de Braga, actual Rua do Amial, seguia pela Devesa do Agueto até ao Lugar do Regado, de onde continuava “acantilada em arcos”. Talvez fosse partir daqui, aproveitando o aqueduto existente, que a minha família mandasse construir por sua conta um prolongamento até a casa.
A nossa quinta, onde vivi com a avó Leonor, ficava mesmo na fronteira entre a freguesia de Ramalde e Paranhos: lugar alto com boas vistas, terrenos férteis e água com fartura, rezavam assim as crónicas do princípio do século XX.
Três carteiras de dois lugares compõem a cena, de tampo inclinado e uma zona côncava para os lápis e canetas. Está tudo ali, naquele local poeirento.
As minhas memórias atravessam o tempo como um relâmpago, de repente estou sentada envergando uma bata branca, a professora Maria Luísa escreve exercícios no quadro, desenhado formas arredondadas para mim familiares. As letras.
Sempre convivi com elas, embora não as dominasse.
Éramos uma classe pequena. Alguns alunos faltavam nos primeiros dias, porque os pais não estavam conscientes da importância da escola, da falta que lhes iria fazer num futuro onde só uma arte não chega.
- Imaginas o que seria aqui, neste espaço agora fechado?
- Onde a sua mãe, Eduardinha, dava aulas às meninas da terra. Afirmei.
- Aqui muita gente aprendeu a ler: crianças, meninas, mulheres, quem tinha vontade de saber. Como é amplo albergava não só a sala de aula improvisada, mas também, o recanto da leitura, da escrita, dos lavores. Era onde a minha mãe se refugiava para se dedicar ao que mais gostava de fazer. Cada canto tinha um nome, exibido num cartão com uma letra aprimorada colado na parede.
- Este sótão tem imenso potencial, poderia fazer aqui algo muito giro.
- Para quê?
Uma expressão de tristeza toma conta dos olhos de Glória.
Há duas grandes janelas de armação em ferro podre e esburacado que espreitam para o telhado. Os beirais enchem-se de terra e ervas, sementes que brotam trazidas pelo vento. Ao meu lado espreita Gloria.
- Na primavera enche-se de flores selvagens, até papoilas nascem. Temos que mandar limpar, senão no Inverno há entupimentos desnecessários. Vê deste lado.
É outra janela que alcança montes e vales, ao longe avista-se a cidade de Guimarães. Entre os montes verdes e castanhos sobressaem pintas de várias cores e formatos que polvilham a paisagem. Ecoam os toques das ave-marias na igreja.
Perdidos por entre o pó duas poltronas de tecido adamascado num tom indecifrável espera que alguém lhe dê alguma utilidade, um candeeiro de pé com o abjour tombado faz o conjunto com uma mesa pequena, quadrada, vestida num castanho muito escuro. Adereços espalhados um pouco por todo o lado compõem o cenário: livros, malas de viagem, sombrinhas, marionetas de madeira, cadernos, folhas avulsas, uma máquina de escrever ferrugenta com o tampo em couro, pequenas telas, caixa de pinturas, pincéis, e vestidos, muitos vestidos estilo bella époque. Estávamos no Cantinho da leitura. Ali apodreciam ao tempo numa estante suja, exemplares de Rimbaud, Baudelaire, Anatole France Zola, Balzac e Verlaine.
Um baú aberto mostra chapéus de feitios diversos com penas e abas compridas. No outro canto uma chaise-longue espreguiça-se pelo tédio dos seus dias, esquecida de ver gente por aqueles lados. Quatro canapés juntam a ela nesse queixume.
Aborrecidos dias que devotados ao abandono, sem vida, aquele sótão fica em perpétua solidão...

domingo, 9 de março de 2008

O quê foi? Ah! Qiéres o quêi?


D. Amélia é uma mulher velha, só, rude e fingida.
Mora num bairro típico, daqueles repletos de casas coloridas, subdivididos em exíguos compartimentos com tez escura, sombrios, e taciturnos.
É usual abeirar-se do varandim, o único espaço do casebre com luz natural, e ali palrar aos berros gatafunhados com a vizinhança que momentaneamente aparece à janela.
- Olha a grafonola, já está no poleiro! Gracejam os miúdos de rua.
Tem sempre uma expressão desconfiada no olhar. Fala aos solavancos e tropeções na língua portuguesa. A sua voz é um trovão que se apodera da terra, rouca, soturna como vinda do além.
Basta um perdido se acercar e perguntar algo em tom imperceptível. Que rebusca todo os impropérios que conhece num linguarejar fluido.
E eis que em jeitos teatrais num papel de marafona: coloca as mãos na anca, bamboleia-se ritmadamente de um lado para o outro, nariz empinado, ladeia o rosto e com um olhar ameaçador reposta perante o terror do seu ouvinte.
- O quê foi? Ah! Qiéres o quêi?
Seja português ou estrangeiro que passe pelas ruelas de Miragaia, que com um sorriso nos lábios e gestos graciosos ouse falar-lhe, afugenta-se amedrontado pelo jocoso semblante da D. Amélia.
Os putos e rapazotes que se reúnem à porta da taberna da ribeira, numa das toscas ruas daquele bairro. Sempre que avistavam um turista incauto perdido naquele labirinto, informavam com agrado:
- Please, ask this lady! E apontavam radiantes para Amélia, que no Verão se sentava na soleira da porta.
E lá iam de fininho, sorrindo, sozinhos ou em grupo ao encontro dela. Tocavam gentilmente no ombro. Endemoninhada, erguia-se num repente aos gritos a correr atrás das vítimas que, muitas vezes, fugiam uns para cada lado.
Os vizinhos avisavam:
- D. Amélia não pode tratar assim os turistas. Afugenta as pobres criaturas. Isso é mau para o negócio da zona.
- Ai! Quero lá eu saber desses trastes que vêm para aqui insultar-me em estrangeiro. Não vê a cara deles de gozo?
- Eles estão perdidos. Desejam que alguém lhes indique o caminho.
- Ora essa! Isto é uma máfia a mando para me desinquietar a alma, resmungava a velha.
Os jovens riam divertidos e chamavam, acenando:
- Voltem aqui! Came back! Vien ici!
Mas os visitantes partiam. Olhavam para trás e barafustavam articulando os braços.
Era sempre assim. Amélia não sabia ser simpática, apenas rude e bruta. Talvez nunca ninguém lhe tenha ensinado gestos de cortesia.
De qualquer modo, é uma mulher com genica, de espírito vivo e mordaz. Uma hipocondríaca nata, padece sempre de qualquer mal: a doença do vizinho, algo anunciado no telejornal ou descoberta entre as letras vivas de uma revista.
Antes de a visitar tinha estado acamada, muito mal dos intestinos, com a doença da Língua Azul que se transformou em roxo com o passar do tempo. Foi-lhe transmitida por um ovo mal passado, dizia.
Anteriormente, começou por sentir um vazio na cabeça e umas comichões na nuca. Foi ao hospital Santo António, onde queria ficar internada. Como a mandaram para casa, piorou da bicha-solitária que lhe comeu os fígados. E a doença das Vacas Loucas foi – lhe transmitida por um vírus hospitalar infiltrado no soro. Dentro das suas previsões, ainda agoirou que padecia de um ABS, que lhe tinha passado pelo miolo.
Atreita aos vírus e outros padecimentos devido ao sangue fraco. Todas as noites, pela madrugada, sai de casa sem ninguém a ver com o seu carrinho roubado num supermercado. Percorre os contentores de lixo das redondezas onde recolhe as suas relíquias, por entre a esterqueira alheia.

quarta-feira, 5 de março de 2008

A carta anónima



“Francisco, morreu legando tudo à Santa Casa, em testamento datado e assinado pelo seu próprio punho.
Uma das condições está descrita no artigo Duodécimo (Décimo Segundo) deste testamento, e não está a ser cumprida. Recordo que a senhorita é herdeira legítima destes bens. Essa alínea impõe à misericórdia encargos e obrigações vitalícias, que em caso de falta ou falha, a herança será distribuída em iguais partes pelos herdeiros referidos e mencionados no testamento.
O lar que funcionava na casa da foi desactivado há alguns anos. De lá para cá, a casa tem sido exposta a vândalos, roubos e sujeita a um rasto de destruição (em anexo vão fotografias do seu estado actual). Foram colocados na quinta cães de guarda, que não evitam a degradação da casa e a perca de património cultural que é de todos.
A Misericórdia tem por obrigação zelar pelos bens que lhe foram doados e confiados. Mas não o está a fazer. Tem tido uma atitude negligente, facilitadora, que justifica com o impasse de o projecto de recuperação estar retido nos meandros da Câmara Municipal para aprovação. Conflitos à parte, o dever mantém-se. E o imóvel é sujeito à intempérie e à degradação perdendo para sempre bens irrecuperáveis.
Senhorita Matilde, há muito por descobrir. Acredite, neste anónimo que lhe escreve. Não me identifico, porque pertenço aos quadros de uma instituição, que mantém contactos com alguém influente, para uma futura negociação que irá transformar, se nada fizer, aquele espaço num empreendimento de luxo, pago a peso de ouro.
É verdade também, que o actual PDM (Plano Director Municipal) o impede, destinando o local a espaço verde. Mas isso é rapidamente sanado, acredite. Nada mais posso fazer do que avisá-la.
Apesar de revoltado, encontro-me engalfinhado nesta máquina, bem oleada, que me acorrenta de pés e mãos. A quem muitos a apelidam de sistema. Esta coisa, que apesar de vivermos em plena liberdade de expressão, estamos amarrados a ela, mesmo contrariados, porque as represálias pela “liberdade” seriam funestas.
Compreende o que quero dizer: todos temos família para sustentar, contas para pagar, filhos a quem queremos dar uma vida melhor, as nossas limitações.
Sei que achará estranha esta carta só com remetente, e até porá em causa a sua veracidade. Eu sei que perguntará, quem é este? O que me quererá?
Sei também, que ponderará a sua vinda para Portugal porque saiu daqui demasiado desiludida para voltar tão rapidamente.
Eu não sou um louco que decidiu investigar a vida alheia. Sou antes, um ser que acredita que ainda é possível mudar o curso das situações, mesmo quando parecem inevitáveis.
Sei igualmente, que será um transtorno para a sua vida deixar Viena e o Architekturzentrum Wien onde trabalha, mesmo que seja temporariamente. É uma mudança brusca demais, quando se tem só uma carta e um testamento como argumento.
Eu confesso que investiguei tudo, e tenho em meu poder uma cópia da prova de que é a legitima herdeira de D. Francisco.
Irá ter uma surpresa, como eu tive. Há muito por desvendar.
Poderia ter-lhe enviado toda a documentação, mas, com certeza, iria querer confirmar pelos seus próprios meios. De qualquer forma, a pesquisa iria ser realizada. Assim, decidi remeter-lhe unicamente as pontas desta enorme meada para que, por si, as desenlaçasse.
Acabo esta carta, já longa, na esperança que não a ignore.
Junto envio-lhe o testamento, com o parágrafo devidamente assinalado referente às obrigações que o seu tio-bisavó, chamemos assim, impunha à herdeira –, que não estão a ser cumpridas, e ainda, fotografias comprovando o estado actual da casa da Quinta em plena degradação.
Dentro do volumoso envelope, há uma pequena carta lacrada, que só deve ser aberta, só e unicamente, no caso de decidir pela sua vinda a Portugal. E peço-lhe que só o faça em território nacional.
Permita – me um conselho, senhorita Matilde, não conte a ninguém o seu propósito, pode correr riscos. Investigue sem levantar alaridos ou ruído desnecessário, quando reunir provas incriminatórias, não procure ninguém, não aclame por justiça perante os infractores. Eles são surdos aos direitos alheios e só olham para os interesses próprios. Apenas rume ao lugar certo, e surpreenda-os querendo a justiça que lhe é devida.
Desejo-lhe coragem e perseverança. Eu vou estando atento. Quando começar a mexer no que não convém, onde trabalho haverá alarido, saberei que estará por perto.
Despeço-me cordialmente,
O desconhecido.”

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Na casa


Uma luz ténue espreita pela clarabóia partida, os raios infiltram-se pelas nesgas; entre vidraças quebradas, portadas destruídas, buracos na parede e tectos caídos.
Um hall revestido a azulejo azul e branco mal conservado, a grande janela e porta para o exterior de onde se avistava outrora o primaveril jardim, em estilo romântico com bancos em pedra, muitos amores por lá passaram juntos e envolvidos no cheiro que imanava das tílias. Agora sim, consigo identificar onde estou, onde sempre quis entrar. Este espaço taciturno, destruído é a casa do tio Francisco. É a casa do tio Francisco, grito com toda a força.


Não faço a minha ideia como vim aqui parar. Estou sozinha, julgo, só eu e o luar que pelas frinchas me acompanha.
Estou no rés-do-chão da casa. Salas, saletas, átrios, corredores; as divisões comunicam entre si, sempre com uma intenção habilmente pensada pelo mestre Nasoni.
Encontro-me na antiga salinha de entrada, contígua à capela e à ante sala onde o capelão vestia os paramentos antes da missa. Trespasso às teias de aranha da entrada em meio arco e com colunas laterais para a área onde coabita a velha escadaria, majestosa nos seus tempos, com a porta principal da casa que se abre, quando não estava entaipada, para o frondoso jardim já na zona lateral.
Preguiçosa, esgueiro-me pelo ponto mais elevado, para não ter que me baixar fugindo daquelas intermináveis teias que se colam a quem passa. Quase se tornam imperceptíveis, de modo, que não é de estranhar levar meia dúzia delas comigo.
Do lado esquerdo, ergue-se a escadaria dividida em dois lanços laterais que se unem no corpo central. Pode não ser preciosidade arquitectónica, mas tem uma linha sóbria e elegante. Teve, noutras épocas quando por cá passaram os convivas do tio, amigos de tertúlia, companheiros de ideologias politica e partidárias. Agora, nesta casa de aspecto tosco, quase tudo se encontra numa posição oblíqua a minha verticalidade. Variadas vezes sou forçada a acompanhar o movimento das coisas para perceber o que é. Aquela pistola apontada em minha direcção, tão ameaçadora, suspensa no sopé das escadas, não é mais do que um pedaço do balaústre pendurado.