Happy New Year!

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Cheira-me que está aí alguém.... então, não cumprimentas?

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

A visita à quinta


Através do diário da Eduardinha, sobrinha da Mizi, tenho acesso a pormenores que de outra forma, jamais saberia.
Aluguei um carro, porque a minha ausência do país e da cidade deixou-me de fora na remodelação das linhas do STCP. Procurava o que já não existia.
Ganhei coragem e decidi hoje ir ver a casa na sua genuína destruição. Os emails enviados a Misericórdia para autorizarem uma visita à casa foram ignorados.
Estou ansiosa. Tento ganhar tempo, necessito de descontrair, decido ir de metro. Entro na Trindade e saio em Francos. Conheço bem a zona, a avó Leonor e eu vivemos numa quinta em Ramalde ali próximo.
Caminho na rua paralela à linha do metro e cruzo em direcção à Rua Airosa. Desconhecia o túnel que desagua no Bairro de Francos, talvez por não vaguear por aqui há bastante tempo. Atravesso para a Travessa da Prelada, no início do lado direito ergue-se agora um prédio que alberga famílias, foi um local de trabalho. Em criança achava graça aquela casa, que nada se assemelhava com uma fábrica. Em hora de almoço, as operárias juntavam-se junto ao portão com as suas merendas, algumas ainda traziam algodão no cabelo e o impregnado na bata cheiro dos tintos. Falavam alto, os trolhas mandavam piropos e metiam conversa. Era um alarido típico da hora de almoço.
Hoje, cada um passa em silêncio de um lado para o outro, circunspectos sem um cumprimento. A evolução trouxe o acréscimo de população para o lugar, mais frieza e individualismo.
À medida que me aproximo, as pernas custam a responder ao meu comando, tremelicam perante a tentativa de um passo firme.
A torre descobre-se perante os olhos, a árvore que me tapa a vista desaparece.
Quase caio de colapso. A destruição é superior ao que tinha imaginado; os vidros das janelas laterais estão totalmente partidos, outros inexistentes. Madeiras quebradas e despedaçadas, as portas arrancadas, os pequenos castelos que enfeitavam ao longo do muro da entrada, o pouco ainda existente, estão no mais completo abandono, como a casa.
Desço o que resta daquilo que era um dos acessos da quinta, ainda em terra, logo ao lado da escola. Ainda resistem umas quantas casas que pertenciam a caseiros e a pessoas que moravam por ali. Aquela zona ainda faz lembrar o Porto rural do início do século passado; casas em pedra com terrenos de cultivo, carreiros estreitos e sinuosos em terra batida ladeados por muros alto, casas com telha à antiga Portuguesa, o silêncio. Não parece localizado em plena cidade. Vira-se as costas para a urbe e é outro mundo.
A lixeira amontoam-se nos campos que circundam a quinta, os muros envolventes tentam subsistir ao tempo e à falta de obras, mas é difícil. A vegetação, sem regra, invade por onde pode, em cada frincha que se abre. É a desolação. Mesmo assim, a casa tenta sobreviver imponente às condições mais adversas. É heróica.
Existe uma parte que foi deitada a baixo para abrir uma rua, penso que isso ainda é do tempo do tio Francisco, que doou ao município.
Avisto uma pequena mercearia na rua principal, a antiga alameda de acesso particular à quinta. Entro.

- Boa-tarde!
- Boa-tarde! Que deseja? Pergunta-me uma senhora de cabelo bem arranjado, loiro, de bata aos quadradinhos azuis e brancos e com um ar simpático.
- Gostaria de saber alguma informação sobre a esta quinta?
Comecei a escolher algumas peras que estavam num caixote de madeira. A mulher olhou seriamente para mim e parou o que fazia.
- Saber o quê? Tudo o que há para saber está à vista, não lhe parece?
- Há quanto tempo a casa está abandonada?
- Fechada há mais ou menos 5 anos. Deteriorada? Dessa data para cá e cada vez pior.
- Não vem cá ninguém?
- Vêm. Normalmente por esta hora aparece por aqui um casal numa carrinha antiga, que vem dar comer aos cães. Porque?
-Por nada. Gostava de visitar a casa. Ver em que estado está o labirinto. Reparei pelo buraco da fechadura do portão, que as portas da casa permanecem abertas o tempo todo.
- Deixe-me aconselhá-la. Duvido que a deixem entrar de qualquer modo. Outras pessoas fizeram o mesmo pedido e justificaram-se dizendo que, “não podiam”, “ os cães podiam morder, não podem assumir essa responsabilidade”, “ não têm ordem para isso”. As razões são várias. Mas tente...
Quanto ao labirinto, se for em direcção ao portão da quinta e virar à esquerda, e depois à direita, contornado sempre o edifício, irá ter às traseiras. Suba o muro e espreite. Aí terá uma visão boa do labirinto.
Qual era a outra pergunta? Ah! As portas da casa estarem abertas. A mim o que me chateia, é ver a da capela totalmente aberta. Acho que merecia outro respeito. Mas eu digo-lhe, com as portas abertas tudo se destrói mais depressa.
- Acha que fazem de propósito?
- Não sei. A intenção que cada um, nunca poderei saber. Mas, contudo, de uma coisa tenho eu a certeza. Se houvesse interesse, existia mais cuidado. Zelamos pelo que queremos bem. Mas a menina está tão interessada na casa, porquê?
- Bem...eu. Hesitei. Sabe, eu sou jornalista e estava interessada em fazer uma reportagem sobre o abandono das casas com relevante interesse público. Neste caso, a remodelação da casa e jardins circundantes foi um projecto de Nasoni, tem um valor histórico, não acha?
- Se a menina é jornalista, acho bem. Faça o seu trabalho. Quem foi esse que fez isto?
- Quem? O Nasoni? Foi um arquitecto italiano que fez obras importantes na cidade do Porto. Chamava-se Nicolau Nasoni.
- Não o conheci e moro aqui há muitos anos, menina.
- Tenho a certeza que não. Ele viveu no séc. XVIII. Ele é que projectou a Torre dos Clérigos.
- Sabe o que tenho pena? Diz a pobre mulher com um ar triste.
- Não faço ideia. O que é?
- Aquela capelinha dá dó. Tantas vezes foi ali à missinha ao Domingo. Era como uma família. Todos os vizinhos iam, todos se conheciam. Era uma capelinha muito pequena, mas ajeitadinha. Escusávamos de caminhar até ao Carvalhido, aqui era mais perto.
Olhe que a capela enchia de fiéis, muitos tinham que assistir cá de fora. Era bonito. Agora, menina, até dá pena.
Chegam novos fregueses que cumprimentam. A senhora despede-se com um aceno e diz-me:
- Costumam vir por esta hora. Já que está cá espere um pouco e tente.
- Diga-me uma última coisa, por favor. E se eu tentar entrar às escondidas, quando eles abrirem o portão.
- Tente. Responde-me em surdina. Se me perguntarem, eu nunca a vi por aqui. Em caso de precisar de alguma coisa, diga. E passa-me para a mão um bocado de papel branco com um número de telefone. Pisca-me o olho e entra rapidamente.

6 comentários:

Anónimo disse...

És o máximo!

Anónimo disse...

Sinto-me um voyeur nesta história. Este texto parece que levou um ano a ser preparado. Muito bom! E seguiste o meu conselho de colocar mais diálogos... Ficou soberbo. Continua.
EJ

Anónimo disse...

Já agora, tem cuidado com os cães. Sei que gostas delas mas lembras-te dos que lá vimos...
EJ

Anónimo disse...

A vida dá mais do que tira, e quando tira é porque aquilo não era o melhor para nós. Fazemos a nossa parte, se mesmo assim, não é possível, algo vamos aprender...Acredita nisso.
Beijos e Parabéns.
RP

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

fantástica,parabéns.