Happy New Year!

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Cheira-me que está aí alguém.... então, não cumprimentas?

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

O que faço eu aqui?

A despedida da Mizi daquela casa foi custosa, eu sei. Nos dias que antecederam a saída, a minha tia ocupava-se o mais que podia. Arrumava tudo em cestos de verga e baús de madeira. O recheio foi-lhe doado.
Enquanto os homens e galegos cirandavam de um lado para o outro, enchendo os carros de bois, mulas e burros para a mudança. A tia, conscienciosa, certificava se os animais tinham bebido água e se as carroças não se encontravam atoladas para os pobres bichos.
Fez descarregar meia dúzias delas, por considerar que transportavam excesso de peso. Mesmo sobre os protestos dos homens.
- Eu é que sei, defendia a tia.
Aprendeu com D. Francisco a lutar pela constância das suas opiniões.
Depois, corria de um lado para o outro, para que nada se quebrasse.
Na véspera da saída, quis estar só. Percorreu os locais míticos, despediu-se dos caseiros. Alguns deles, também de partida, pelas expropriações realizadas pela Câmara a bem da utilidade pública, que os deixava sem tecto.
Era o início do longo e lento esquartejamento que a quinta iria sofrer até hoje.
Continuo sem saber em que dia estou. Fizeram-me uma festa para comemorar os meus 99 anos. Nem me lembrava, só me recordo da quinta e do passado.
Levaram a cadeira de rodas para a sala, não queria ir. Estava a escrever no meu papel já gasto como eu.
Quando lá entrei tive medo daquelas caras desconhecidas que se debruçavam ao meu redor, a fazerem-me festas no braço, na cara e a gritarem:
- Parabéns! Parabéns! Parabéns! Nós já não chegamos à sua idade. Isto sim, é uma mulher rija.
E batiam palmas entusiasticamente, pareciam gnomos em cima de mim com expressões patéticas, sobrenaturais.
Os pequenos corriam desenfreadamente por toda a casa.
- Eu quero ir para o meu quarto, preciso de escrever antes que me esqueça.
- Mãe! por favor, nem hoje pára com aquela irritante e constante escrita. Estamos aqui todos juntos para comemorar o seu aniversário e a mãe nem um esforço faz, por favor! Falou uma delas com voz severa.
Levanto os olhos e observo aquela figura antipática que, com certeza, vítima de algum engano me chamou mãe, porque não me lembro de alguma vez a ter visto.
Entoam uma ladainha monocórdica de parabéns que me é dirigida. Continuo sem perceber porque se lembraram hoje de mim, de onde veio esta gente toda, que querem de mim. Eu nunca os vi.
De repente, não sei porquê, recordei-me da estrada dos Carreiros que ia desde da Foz do Douro até Bouças. O pai era natural do lugar de Cadouços.
Começou a namoriscar a mãe nas festas em honra de São Bartolomeu, era criadita de servir de uma família inglesa ligada ao vinho do Porto fabricado em Inglaterra. Tinham uma casa de veraneio na Avenida dos Carreiros, para onde se mudavam na estação quente. Gostavam de assistir às festividades populares, os estrangeiros como lhes chamavam na zona, divertiam-se com os pés descalços, as roupas velhas e maltrapilhas dos homens do mar, com os pregões das vareiras na sua voz rouca, dos carros dos bois a puxarem os barcos.
Os mais antigos que vinham da faina contavam como era duro atravessar o “Carreiro Mau”, na altura nu e deserto, só se avistava casas para lá da praia do Molhe. Apelidaram-no assim, pelos atalhos sombrios que percorriam a costa, as curvas sinuosas e estreitas em terreno esburacado, a incerteza do caminho escuro que de Inverno trazia a tempestade, a chuva, o vento forte e a areia atirada aos olhos não deixava ver a passagem. Por isso, era comum, avançarem todos em grupo com uma candeia. Existia uma escarpa rochosa, ainda alta, que descia até à areia, longo areal a desembocar no mar.
A faina do mar era a vida daquela gente, os menos corajosos dedicavam –se à apanha das lapas, mexilhões e percebas que desprendiam das rochas com um instrumento aguçado quando a maré vazava.
Aqui, o ruído continua alheio aos meus pensamentos. Agora, comem todos bolo de aniversário que dizem ser o meu.
Nas conversas que a mãe tinha com a tia Mizi na saleta, certa vez falaram de Lourenço de Magalhães muito em surdina. Como era segredo, fiquei à escuta por debaixo da janela, como o costume. D. Lourenço tinha ido visitar D. Francisco com um ar grave e sério para uma palestra a dois. Foi ai que conheceu Mizi, soube da sua existência e não gostou. Os dois cavalheiros trocaram palavras acesas, sempre com a maior educação. Depois, despediram sem o comum aperto de mão e D. Lourenço saiu. Eram interesses de partilhas, mexerico de família com a intenção de colocar os herdeiros em despique.
D. Maria Cristina Pereira Gaio Noronha, mãe de D. Lourenço, fruto do seu primeiro casamento e D. Francisco Noronha, seu segundo marido.
O viúvo resolveu bem a situação. Não gostava de conflitos e já tinha muito de seu. Deslocou-se ao tabelião na Praça Nova e declarou em documento lavrado, que nada queria da sua amada esposa, os bens revertiam todos para o filho.
Os dois ainda chegaram a reatar relações cordiais. D. Lourenço morreu em 7 de Abril de 1901, primeiro do que D. Francisco de Noronha, que Deus o levou 3 anos depois.

3 comentários:

Anónimo disse...

Perante o teu talento...que tanto me surpreendeu e ainda surpreende...que mais poderei dizer senão parabenizar-te pelo teu trabalho e dar-te toda a força para que continues e que um dia destes resolvas compartilhar com o 'mundo', este teu talento...e quiça o mesmo não me inspire a fazer a mesma coisa...:)

Anónimo disse...

Penso que a tua escrita está cada vez mais apurada. A tua pesquisa, aliada à tua vivência está muito presente no texto. A convivência com idosos pode levar-nos a tentar compreendê-los deste Alzhemier colectivo em que vivemos.

Gostei muito deste texto, embore pense que te aproximas muito da Agustina Bessa Luís. Os textos de hoje precisam de mais acção, mais diálogos, que tu tão bem sabes fazer.

Parabéns e continua. Vais conseguir o que queres. Mais cedo do que julgas...

EJ

Anónimo disse...

Olá Elsa. Há quanto tempo, não é verdade?
Só te queria dizer o quanto gostei dos textos, particularmente deste.Continua, vou estar atento.
Beijos
Pedro