Happy New Year!

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Cheira-me que está aí alguém.... então, não cumprimentas?

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A chave...




Desci a rua o mais depressa que pude. Espreitei, novamente, pelo buraco da fechadura onde agora passa uma corrente grossa que prende a um cadeado.
Vi os cães deitados ao sol junto canteiro da entrada. Rodei a corrente e espetei com o olho no orifício para tentar ver com a maior amplitude possível. Sinto-me como uma câmara rotativa que tenta gravar tudo ao seu redor. Há um cão grande que se levanta, mas não ligo, continuo a minha pesquisa pelas fretas da casa. Observo nos mínimos detalhes todos os ornamentos da casa. Abomino estar ali presa sem poder entrar, queria fechar as portas para proteger as madeiras, o interior da casa está, com tudo escancarado, tão vulnerável como uma criança.
Sinto de repente e de um modo rápido algo frio que encosta no meu dedo despido pela sandália, alcança-me de raspão uns dentes aguçados, retiro o pé que estava para lá do portão num gesto brusco. Ainda é alta a diferença entre o portão e o solo, sem querer e na ânsia de ver é fácil cair na armadilha de ultrapassar a barreira de segurança. O cão não teve piedade, ainda sobrou um pouco da sua baba que vinha colada ao dedo. Eu tenho empatia com os animais, queria conquistar-lhes a confiança para conseguir entrar sem ter que me refugiar em cima de uma árvore qualquer.
A missão augura-se espinhosa, juntos na entrada alvoraçados, num ladrar incessante de desespero por um pouco da minha carne. Terei que regularmente aparecer para aprenderem a reconhecer-me como alguém amigo. O que parece difícil, não se deixam convencer facilmente.
Recuo em marcha-atrás, e revejo o quanto estão danificados os muros ainda existentes que circundavam a quinta.
Do lado esquerdo, junto do muro ergue-se agora um edifício que, se não existir vigilância, poderá danificar, ainda mais, o que resta da parede. Existe um interesse arquitectónico e histórico que é sempre relegado para segundo plano, nem parece que o IPPAR se situa a aproximadamente 2 km deste local.

Os carros ali estacionados dão um óptimo encosto para quem, como eu, está decida a esperar. Até há hora anunciada falta bastante tempo. Espero. Tenho a tarde por minha conta. Cada vez que observo casa e os jardins como posso, vou descobrindo um pormenor novo, exactamente como num namoro. Existe sempre um detalhe que sobressai em determinada altura.
Como posso imaginar, os trabalhos de remodelação desta majestosa casa. A visita de Nasoni, pela primeira vez, a pedido de D. António Noronha e Melo e sua mulher, D. Mariana Isabel Noronha, bisavós do tio Francisco.
O arquitecto italiano chega ao Porto após contactos com nobres desta cidade. Depois de ter pintado os tectos do palácio de La Valeta, em Malta. Na altura o frei D. António Manuel de Vilhena era Grão-mestre da Ordem com o mesmo nome. Coincidência ou não. Mas estou certa que o acaso não pertenceu a esta realidade. D. Manuel Vilhena é filho de D. Ana Noronha, ainda familiar dos donos da quinta.
Soube pela pesquisa que realizei, que Nasoni chega ao contacto directo com D. António Noronha através de um cunhado, que era arcediago do Porto. Talvez o deão Gerónimo de Távora e Noronha, protector do arquitecto italiano, seja o intermediário de tão nobre causa.
Encostada a um carro, enquanto o calor me faz transpirar de cada poro toda a água que tinha no corpo.
Imagino, a rua principal ladeada de árvores que refrescam os caminheiros, a terra batida onde se ergue a poeira cada vez que passa uma carruagem, o barulho dos cascos dos cavalos, ritmados, que batem certeiros no chão, o rodado tremelicando atira as pedras que calca para quem está por perto.
O portão grande, majestoso. Aquele que se encontra a minha frente, imagino como estaria sempre aberto, com movimento de entrada e saída dos trabalhadores do campo, dos criados da casa, dos seus filhos, das gentes da terra, do lugar da Prelada, dos afilhados do tio. Era comum, membros das famílias nobres terem muitos afilhados, era a bênção que os menos afortunados podiam dar aos seus filhos. Uma espécie de garantia que os padrinhos, ricos, haveriam de assegurar o futuro do afilhado.
Transporto – me para aquele tempo com a imaginação fervilhante de imagens: carros de bois, cavalos, burros carregados de materiais para a remodelação da casa. Carroças descem a rua, apeadas de trabalhadores que seguram a mercadoria e através de cordas atadas ao cabeçalho puxam vigorosamente pelo carro, que traz enormes pedras. Homens com pás às costas, madeira aglomerada nos cantos.
Movimentos repetidos, gestos monótonos num trabalho pesado que faz erguer as paredes. A casa ganha forma. O espaço torna-se mais gracioso no traço do mestre Nasoni.
Continuo à espera. Pára um carro com um aspecto velho à porta da quinta. Sai um casal com roupa de trabalho, dirige-se para o porta-bagagem e retira uns sacos de tamanho médio. A mulher de andar cambaleante tropeça numa pedra de dimensão considerável e solta um palavrão.
- Não bês por onde andas? Bê onde pões as patas. És mesmo uma pêssega. Comenta atenciosamente o companheiro.
- És muito simpático. Tens é muito paleio, botas muito verbo. Vê lá se não és tu a ir com a mona ao chão.
- Vá, pega lá este saco da comida dos vichinhos. E passa-lhe para a mão um saco de plástico azul de aspecto gordurento. Confesso que já não estava familiarizada com este tipo de calão. Ao início, tive um pouco de dificuldade em descortinar o sentido da conversa, tive de apelar para toda a minha astúcia e concentração. O alemão entrou no meu ritmo diário. Quando falo português o calão ou o regionalismo nunca estão presentes. De modo, que me desabituei a determinados termos e até a sotaques.
A mala do carro é fechada com as duas mãos auxiliada por um encontrão de anca, tudo isto, acompanhado com um forte arremesso do corpo contra a bagageira.
- Isto está podre. Grita o homem arreliado.
Atira algo que tilinta. As chaves do portão, como desconfiei. Encosto-me ao muro do lado oposto e agacho-me ligeiramente. Vejo agora por entre os vidros dos carros ali estacionados todos os movimentos.
A mulher de chave em punho, vira-se para o portão, pega no cadeado e faz rodar a chave, tira a corrente que envolve os buracos de um antigo canhão de fechadura e empurra a metade da porta que se abre. Ela entra à frente. Deixa o portão semi-aberto. Ele entra a seguir e tudo é fechado.
Aproximo-me da entrada porque pretendo entrar de qualquer forma, lícita ou ilicitamente. A chave está pendurada do lado de fora. Abeiro-me do portão, espreito pelo buraco e não vislumbro movimento. As portas da entrada para a casa continuam escandalosamente abertas, deixando a descoberto a privacidade que o tio tanto prezava. Sinto como um acto de violação.
Envolta neste sentimento de “fazer justiça”, estou resoluta a arriscar o que for preciso para cumprir o meu objectivo. Tento abrir o portão para entrar, uma chiadeira insuportável faz se ouvir, volto a fechar apressadamente e escondo-me. Ninguém aparece para saber a origem de tal ruído. Não há tempo a perder. Tenho de arriscar, ninguém garante que me deixarão entrar alguma vez e jamais terei a oportunidade estar tão perto da chave.
Retiro da minha carteira o blush, com o qual tento marcar um molde da chave, mas a matéria é dura para esse efeito. Necessito de algo com maior maleabilidade.
Volto a mercearia e peço para ir a casa de banho, onde já tinha estado, a metade de sabão continua lá. Encho o lavatório com água e mergulho o sabão. Rapidamente amolece, seco-o e resgato-o para mala. Agradeço a gentileza, desço a rua. Agora sim, retiro a chave do aloquete e enterro-a no sabão. O molde ficou perfeito, aparentemente.

3 comentários:

Anónimo disse...

E depois? O que faz ela com a chave?
Nuno

Anónimo disse...

Se o livro fosse publicadao no blog eu não trabalhava só lia até ao ultima linha, e no fim voltava ao principio para ler outra vez. Quando se começa não apetece acabar. Devias escrever um blog infinito para que nunca chegasse ao fim, e termos que parar de ler.

Beijos

Até logo

Unknown disse...

Ois lindinha, manero seu manuscriptum.. de vez em quando ando lendo alguma coisa e aos poucos teria navegado nela todo.