Happy New Year!

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Cheira-me que está aí alguém.... então, não cumprimentas?

domingo, 9 de março de 2008

O quê foi? Ah! Qiéres o quêi?


D. Amélia é uma mulher velha, só, rude e fingida.
Mora num bairro típico, daqueles repletos de casas coloridas, subdivididos em exíguos compartimentos com tez escura, sombrios, e taciturnos.
É usual abeirar-se do varandim, o único espaço do casebre com luz natural, e ali palrar aos berros gatafunhados com a vizinhança que momentaneamente aparece à janela.
- Olha a grafonola, já está no poleiro! Gracejam os miúdos de rua.
Tem sempre uma expressão desconfiada no olhar. Fala aos solavancos e tropeções na língua portuguesa. A sua voz é um trovão que se apodera da terra, rouca, soturna como vinda do além.
Basta um perdido se acercar e perguntar algo em tom imperceptível. Que rebusca todo os impropérios que conhece num linguarejar fluido.
E eis que em jeitos teatrais num papel de marafona: coloca as mãos na anca, bamboleia-se ritmadamente de um lado para o outro, nariz empinado, ladeia o rosto e com um olhar ameaçador reposta perante o terror do seu ouvinte.
- O quê foi? Ah! Qiéres o quêi?
Seja português ou estrangeiro que passe pelas ruelas de Miragaia, que com um sorriso nos lábios e gestos graciosos ouse falar-lhe, afugenta-se amedrontado pelo jocoso semblante da D. Amélia.
Os putos e rapazotes que se reúnem à porta da taberna da ribeira, numa das toscas ruas daquele bairro. Sempre que avistavam um turista incauto perdido naquele labirinto, informavam com agrado:
- Please, ask this lady! E apontavam radiantes para Amélia, que no Verão se sentava na soleira da porta.
E lá iam de fininho, sorrindo, sozinhos ou em grupo ao encontro dela. Tocavam gentilmente no ombro. Endemoninhada, erguia-se num repente aos gritos a correr atrás das vítimas que, muitas vezes, fugiam uns para cada lado.
Os vizinhos avisavam:
- D. Amélia não pode tratar assim os turistas. Afugenta as pobres criaturas. Isso é mau para o negócio da zona.
- Ai! Quero lá eu saber desses trastes que vêm para aqui insultar-me em estrangeiro. Não vê a cara deles de gozo?
- Eles estão perdidos. Desejam que alguém lhes indique o caminho.
- Ora essa! Isto é uma máfia a mando para me desinquietar a alma, resmungava a velha.
Os jovens riam divertidos e chamavam, acenando:
- Voltem aqui! Came back! Vien ici!
Mas os visitantes partiam. Olhavam para trás e barafustavam articulando os braços.
Era sempre assim. Amélia não sabia ser simpática, apenas rude e bruta. Talvez nunca ninguém lhe tenha ensinado gestos de cortesia.
De qualquer modo, é uma mulher com genica, de espírito vivo e mordaz. Uma hipocondríaca nata, padece sempre de qualquer mal: a doença do vizinho, algo anunciado no telejornal ou descoberta entre as letras vivas de uma revista.
Antes de a visitar tinha estado acamada, muito mal dos intestinos, com a doença da Língua Azul que se transformou em roxo com o passar do tempo. Foi-lhe transmitida por um ovo mal passado, dizia.
Anteriormente, começou por sentir um vazio na cabeça e umas comichões na nuca. Foi ao hospital Santo António, onde queria ficar internada. Como a mandaram para casa, piorou da bicha-solitária que lhe comeu os fígados. E a doença das Vacas Loucas foi – lhe transmitida por um vírus hospitalar infiltrado no soro. Dentro das suas previsões, ainda agoirou que padecia de um ABS, que lhe tinha passado pelo miolo.
Atreita aos vírus e outros padecimentos devido ao sangue fraco. Todas as noites, pela madrugada, sai de casa sem ninguém a ver com o seu carrinho roubado num supermercado. Percorre os contentores de lixo das redondezas onde recolhe as suas relíquias, por entre a esterqueira alheia.

3 comentários:

Anónimo disse...

Gosto da musicalidade e conteúdo da tua escrita.
Continua!

Luis

Anónimo disse...

...eu queria ter os mesmos cheiros da minha infância,..o pão a sair do forno em dia de cozedura,...onde a minha avó e a tia Isabel,..aproveitava o forno para fazer os bolos fintos,...
ouvir o barulho da venda onde o tio Chico vendia copos de vinho,pitrólio,carvão ,pirolitos de berlinde aos garotos,e os velhos jogavam ao chito,...havia um pouco de tudo,..mas se eu me chegava ao portão ouvia uma voz chamar MARIZINHA,..Ó MARIZINHA,..não vás pá estrada,..vem cá á tia,...
FELIZ ANIVERSÁRIO.
Um dia falarei do avô Semedo.
Bejos.

Vougario disse...

Olá.
Parabéns.
Gosto muito da tua escrita.
Beijo.

Rui Pires da Silva